Tuesday, March 15, 2011

A Guerra

No dia 17 de junho de 1967, exatamente às 2:13 da manhã, meu avô, Geraldo Ambrósio, acordava assustado com o barulho rouco e espaçado da matraca dos reis. Era Semana Santa.

A folia passava pedindo canto para oração, acompanhamento silencioso dos homens e resignação das mulheres. A casa (que resistiu bravamente ao tempo, mas não aos homens) estendia sua entrada de duas pontas: pelo alpendre ou pela cozinha-de-fora. Nesse dia, a folia ladeou todo o redor da construção, veio dar na janela do quarto de Seu Geraldo, muito meu avô, deu as costas para a goiabeira pálida do fundo do pomar e anunciou sua chegada.

Horas antes de ser acordado, conversava meu avô na sala e ficava sabendo de uma guerra que estava acontecendo agora, naquele exato momento. Minha mãe (então criança) provavelmente lhe veio pedir que dormisse, que já era tarde; ele se levantou, levou-a ao quarto, disse que ficasse lá, que já vinha. Meu avô nunca tinha visto uma metralhadora, mas conhecia barulho de tiro. Dormiu preocupado: e se chegasse a guerra ali, naquele canto? Com costume mineiro que eu absorvi, antes de se recolher ainda perguntou à visita: “Ô, justo fica... Mas periga a guerra chegar aqui, não?”. A visita negava, era longe, não havia o de quê se preocupar. Pouquinha dúvida.

Mas foi com desconfiança que recostou a cabeça no travesseiro naquela noite. Meu avô nunca soube onde ficava o Egito. Talvez soubesse que era longe, mas quanto? E se os soldados se perdessem do batalhão e viessem parar em Espírito Santo do Dourado? E se confundissem a casa com um silo? Ele não falava egípcio, nem israelense, nem inglês – como ia se explicar?

Meu avô sequer soube que naquele 17 de junho a guerra já tinha acabado.

A matraca soou e o ruído dentro do quarto abalou a paz tênue de Seu Geraldo; pálido, podia jurar que estavam já entrando em casa, com metralhadoras e granadas em mãos. Minha mãe o tentaria acalmar: “Ô pai, o senhor deita, não é nada não. É a matraca, vieram tocar”. Ele suspirou, demorou-se. Por fim, entendeu que estava mesmo no canto dele; e ali, dentro do quarto, dentro da sua cabeça, não havia guerra, nem tiro, nem perturbação. Debruçou-se na janela junto das filhas (a mesma janela onde a esposa perdera os anéis e a vida logo depois do raio mais forte e mais triste que já haviam presenciado naquela casa) e ouviu os violões e o canto. Depois ainda ralhou com os cachorros na porta da cozinha. “É o que não presta, podiam ter entrando dentro do quarto e esses não latiam nada. É o diabo!”.

Tempo em que as coisas eram absolutamente possíveis.

1 comment:

Manuela Farias said...

um tempo da delicadeza...

belíssimo texto. parabéns.